A prece - um conto fantástico
( Igreja nossa senhora da Irmandade dos homens pretos. Destroçada em 1930 em Guarulhos, ficava no calçadão quase em frente ao Poli)
-
Pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome...
O
pai nosso rezado de joelhos e olhos fechados na praça do centro em frente ao
Shopping Poli em Guarulhos. A negra de cabelos quase todo grisalho com roupas
pouco envelhecida fazia daquele clamor cristão uma poesia declamada com
eloqüência, incomodando o morador em situação de rua, este incomodado não pela
roupa, não por ser negra, mas por ver aquela mulher ajoelhada no meio da praça,
onde além de pessoas passando e prédios lá no horizonte se via a Igreja nossa
senhora da conceição, imponente. Incomodado o morador de rua perguntou.
-
Senhora, vai reza lá na igreja! Óia, não tenho nada contra religião, mas tem
duas igreja aqui perto e você se ajoeia no meio da praça. Eu to avisano, porque
daqui a pouco o guarda vai vir aqui pra te levar pro manicômio, e por
experiência própria eu sei que eles não gosta de faze isso.
A
mulher pestanejou, parou a reza por alguns segundos, pareceu um pouco
atrapalhada com a observação apesar de parecer não entender muito o que o homem
dizia, e voltou a rezar. Ele ainda continuou vendo que ela não questionou:
-
Depois não vai dize que não avisei, os bicho são forgado.
“
mas livrais nos do mal, amém...”
Percebendo
que seu amém não fez eco na simples igreja a mulher abriu os olhos e catatônica
não entendia o que seus olhos de jabuticaba olhavam-casas que brotavam do chão
e subiam mais alto que passarinhos, pessoas gritando em frente as “casas” e ainda por cima convidando as pessoas para
entrarem e olharem a exibição de coisas dentro da casa, gente...muita gente na
rua passando de um lado para o outro umas mais rápidas outras nem tanto,algumas
até com roupas diferentes,coloridas e umas com pouco roupa, chapéus
diferentes...a igreja feita com suor e sangue negro foi resumida a uma mancha negra no chão.
Olhou
para o morador de rua que a observava do banco da praça com seu cobertor. E o
perguntou:
-
Vóis me.....
E
foi interrompida pelo guarda civil.
-
Mulher, você não pode ficar ai, o direito é de ir e vir e não de ficar...largada.Vou
chamar a assistência social ou SAMU pra te levar daqui. Ta doente, ta? Ô, não
tem ninguém da sua família pra ligar, quantos anos você tem, trabalha, o que
você está fazendo sentada ai? Você é vagabunda do teatro né? Só pode ser com
essas roupas estranhas ai,só pode ser.
A
mulher ainda catatônica, sem entender quase nada sobre a metralhadora de
perguntas do guarda correu para o único lugar que reconheceu – a Igreja nossa
senhora da Conceição.
O
Guarda civil percebendo que a mulher correu
-
Ei moça! Não corre não! Ta com medo de que? Ta com droga ai,filha da puta?!?
E
o seu companheiro de trabalho o interrompeu:
-
Deixa...é menos trabalho pra gente responder.
Entre
o caminho viu negros de mãos dadas com brancos, mestiços com negros e
brancos...ah,os brancos,mas algo que não entendia era porque uma parcela grande
de negros encontra-se deitado na calçada com roupas diferentes... sujas, faziam
da rua suas casas,diferente das pessoas que caminhavam pela rua sorrindo. Não
agüentou e perguntou.
-
és alforriado, negro?
O
morador em situação de rua lhe pediu uma moeda.
-
me dá um dinheiro, senhora. O bom prato ta lotado, não vou conseguir pegar a
fila.
Sem
entender o homem a mulher saiu andando.
Se assustou com muitas coisas descendo em alta velocidade da rua,nunca
havia visto nada como aquilo se eram ilusões , bruxarias ou algum tipo de
mandinga. Não sabia o que fazer para chegar até a igreja uma legiões de carros
a dividia, nunca havia visto nada como aquilo, era como se fosse um pesadelo.
Até que misteriosamente todos os carros pararam e pessoas atravessaram a rua
com tranqüilidade, todos a olhando como se fosse uma selvagem, uma mendiga
devido a suas vestes estranhas e sua
ansiedade quanto tudo que a cercava.
Pensou
ela:
-
Sé mandinga de sinhá. Mandinga pra mi acha. A pretinha da casa grande acha que
é branca,Escravo que um dia foi como nói, mas acha que é menos preto...acha até
que é branco.Óia lá! Óia lá! Esses
muleque preto acha que é branco.
Enquanto
passava um grupo de meninos em frente a praça ela os abordou.
-
Ei, muleque! Ei muleque! Tu! Tu, pretinho! Quem é sua sinhá? Ela dexa ocê com
esas ropa?
E
o menino rindo respondeu.
-
ei tia! Ta doidona? Que que se fumo? Quero também! E ria
-
oxi! Fali direito!Que no sé que se ta falando.
Chegando perto da porta da igreja mirou a
igreja de cima pra baixo,foi até a porta, olhou para trás como quem vê o nada,
mas o material de pilão tinha sido substituído por espelho e lá se via,mas não
reconhecia o mundo que refletia... o pedinte negro, o polícia – capitão do
mato- correndo atrás dela mesmo sendo negra alforriada. Tudo a ela era
estranho, mas lembrava o mundo que ela conhecia, era o velho travestido de novo
ou o novo travestido de velho.
Entrando
na igreja lembrava a igreja que um dia não pode entrar, onde era reservada
apenas para os senhores e senhoras “de bem”, branco e com bens. Era como se
fosse um mundo ao contrário porque lá dentro da igreja naquele momento tinham
negros e negras rezando, alguns fazendo trabalho para a igreja outros não. O
cemitério que um dia existiu em frente e dentro da igreja foi sucumbido, as pessoas que um dia foram enterradas
lá não mais existia. Descompassada com a igreja benzeu a santa, se aproximou do
banco ajoelhou e começou a rezar para que a mandinga fosse desfeita e que fosse
embora daquele sonho- pesadelo de mundo que apesar de novo parecia muito com o
velho, que apesar dos grilhões terem sido quebrados eles continuavam invisíveis
para quem não quer ver. E assim começou a rezar :
-
Pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome...
E todo mundo na igreja reparou e fez cara de asco,
quando a moça com roupa diferente ajoelhou e começou a rezar.
A prece- Um conto fantástico.
Guarulhos agosto de 2016