quinta-feira, 1 de setembro de 2016

A prece - um conto fantástico



A prece - um conto fantástico

                                        ( Igreja nossa senhora da Irmandade dos homens pretos. Destroçada em 1930 em Guarulhos, ficava no calçadão quase em frente ao Poli)


- Pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome...
O pai nosso rezado de joelhos e olhos fechados na praça do centro em frente ao Shopping Poli em Guarulhos. A negra de cabelos quase todo grisalho com roupas pouco envelhecida fazia daquele clamor cristão uma poesia declamada com eloqüência, incomodando o morador em situação de rua, este incomodado não pela roupa, não por ser negra, mas por ver aquela mulher ajoelhada no meio da praça, onde além de pessoas passando e prédios lá no horizonte se via a Igreja nossa senhora da conceição, imponente. Incomodado o morador de rua perguntou.
- Senhora, vai reza lá na igreja! Óia, não tenho nada contra religião, mas tem duas igreja aqui perto e você se ajoeia no meio da praça. Eu to avisano, porque daqui a pouco o guarda vai vir aqui pra te levar pro manicômio, e por experiência própria eu sei que eles não gosta de faze isso.
A mulher pestanejou, parou a reza por alguns segundos, pareceu um pouco atrapalhada com a observação apesar de parecer não entender muito o que o homem dizia, e voltou a rezar. Ele ainda continuou vendo que ela não questionou:
- Depois não vai dize que não avisei, os bicho são forgado.
“ mas livrais nos do mal, amém...”
Percebendo que seu amém não fez eco na simples igreja a mulher abriu os olhos e catatônica não entendia o que seus olhos de jabuticaba olhavam-casas que brotavam do chão e subiam mais alto que passarinhos, pessoas gritando em frente as “casas”  e ainda por cima convidando as pessoas para entrarem e olharem a exibição de coisas dentro da casa, gente...muita gente na rua passando de um lado para o outro umas mais rápidas outras nem tanto,algumas até com roupas diferentes,coloridas e umas com pouco roupa, chapéus diferentes...a igreja feita com suor e sangue negro foi resumida a uma mancha negra no chão.
Olhou para o morador de rua que a observava do banco da praça com seu cobertor. E o perguntou:
- Vóis me.....
E foi interrompida pelo guarda civil.
- Mulher, você não pode ficar ai, o direito é de ir e vir e não de ficar...largada.Vou chamar a assistência social ou SAMU pra te levar daqui. Ta doente, ta? Ô, não tem ninguém da sua família pra ligar, quantos anos você tem, trabalha, o que você está fazendo sentada ai? Você é vagabunda do teatro né? Só pode ser com essas roupas estranhas ai,só pode ser.
A mulher ainda catatônica, sem entender quase nada sobre a metralhadora de perguntas do guarda correu para o único lugar que reconheceu – a Igreja nossa senhora da Conceição.
O Guarda civil percebendo que a mulher correu
- Ei moça! Não corre não! Ta com medo de que? Ta com droga ai,filha da puta?!?
E o seu companheiro de trabalho o interrompeu:
- Deixa...é menos trabalho pra gente responder.
Entre o caminho viu negros de mãos dadas com brancos, mestiços com negros e brancos...ah,os brancos,mas algo que não entendia era porque uma parcela grande de negros encontra-se deitado na calçada com roupas diferentes... sujas, faziam da rua suas casas,diferente das pessoas que caminhavam pela rua sorrindo. Não agüentou e perguntou.
- és alforriado, negro?
O morador em situação de rua lhe pediu uma moeda.
- me dá um dinheiro, senhora. O bom prato ta lotado, não vou conseguir pegar a fila.
Sem entender o homem a mulher saiu andando.  Se assustou com muitas coisas descendo em alta velocidade da rua,nunca havia visto nada como aquilo se eram ilusões , bruxarias ou algum tipo de mandinga. Não sabia o que fazer para chegar até a igreja uma legiões de carros a dividia, nunca havia visto nada como aquilo, era como se fosse um pesadelo. Até que misteriosamente todos os carros pararam e pessoas atravessaram a rua com tranqüilidade, todos a olhando como se fosse uma selvagem, uma mendiga devido a suas vestes estranhas  e sua ansiedade quanto tudo que a cercava.
Pensou ela:
- Sé mandinga de sinhá. Mandinga pra mi acha. A pretinha da casa grande acha que é branca,Escravo que um dia foi como nói, mas acha que é menos preto...acha até que é branco.Óia lá! Óia lá!  Esses muleque preto acha que é branco.
Enquanto passava um grupo de meninos em frente a praça ela os abordou.
- Ei, muleque! Ei muleque! Tu! Tu, pretinho! Quem é sua sinhá? Ela dexa ocê com esas ropa?
E o menino rindo respondeu.
- ei tia! Ta doidona? Que que se fumo? Quero também! E ria
- oxi! Fali direito!Que no sé que se ta falando.
 Chegando perto da porta da igreja mirou a igreja de cima pra baixo,foi até a porta, olhou para trás como quem vê o nada, mas o material de pilão tinha sido substituído por espelho e lá se via,mas não reconhecia o mundo que refletia... o pedinte negro, o polícia – capitão do mato- correndo atrás dela mesmo sendo negra alforriada. Tudo a ela era estranho, mas lembrava o mundo que ela conhecia, era o velho travestido de novo ou o novo travestido de velho.
Entrando na igreja lembrava a igreja que um dia não pode entrar, onde era reservada apenas para os senhores e senhoras “de bem”, branco e com bens. Era como se fosse um mundo ao contrário porque lá dentro da igreja naquele momento tinham negros e negras rezando, alguns fazendo trabalho para a igreja outros não. O cemitério que um dia existiu em frente e dentro da igreja foi sucumbido, as pessoas que um dia foram enterradas lá não mais existia. Descompassada com a igreja benzeu a santa, se aproximou do banco ajoelhou e começou a rezar para que a mandinga fosse desfeita e que fosse embora daquele sonho- pesadelo de mundo que apesar de novo parecia muito com o velho, que apesar dos grilhões terem sido quebrados eles continuavam invisíveis para quem não quer ver. E assim começou a rezar :
- Pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome...
 E todo mundo na igreja reparou e fez cara de asco, quando a moça com roupa diferente ajoelhou e começou a rezar.


       A prece-  Um conto fantástico.
 Guarulhos agosto de 2016