quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

ainda assim




ainda que os tiranos nos matem
ainda que a máquina repita
o apito do trem desgovernado
de um governo governado por patos
e o fardo seja mais pesado que possamos aguentar
nós seguimos sorrindo

mesmo que o dinheiro seja pouco
e o trabalho as vezes oco
vamos pouco a pouco
construindo um mundo novo
e seguimos sorrindo

apesar de eles querem comprar nossa classe
e por vezes conseguir
e comer caviar
enquanto a gente come mani
nós seguimos

um dia a maré volta
Ésú encontra a porta
a gente acerta o eixo
quebra o queixo
de quem achou
que a gente não tinha jeito

ps: Feliz aniversário Fernanda Varella

ela vem






Ela vem
Lenta como o tempo
talhada de sentimento
Turbilhao sem medo
Ela vem
vendo a vida passar
E a morte perdurar
Manchada de suor ,lagrimas e sangue
ainda que morramos pelo teu nome
Filha de Adonis
Rapida como uma maria fumaça
Desfarsada de novidade ou desgraça
Ela vem
carregando teu cheiro penetrante
seu sentimento contagiante
cercada de amor, choro e sangue
Festa e alegria
Polvora e rebeldia
sexo sem camisinha
Ela ja foi há 100 anos
Antes ainda carregando
No ventre um mundo novo
cada hora que passa
ela ganha corpo
no coração do amante
apaixonado pela vida
pela terra prometida
mas roubada para poucos
no sonho da mulher
que só quer ser respeitada
perfumada pelo novo despertar
Ela demora mas vem
nao esperemos sentado
o cavalo alado de sonhos nos espera
Levantemos vela
o encouraçado esta na janela
do horizonte,
distante mas nao esquecido
ela nos espera no front
rezando pelos nossos mortos
que se foram primeiro
benzendo nossos vivos
que ja estão a caminho
A Revolução demora
mas vem.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

como se o mundo fosse acabar






acordei hoje sabendo
que posso morrer amanha
atropelado por um caminhão
numa cama por depressão
por alguém com arma na mão
os dias passam apressados
atropelados entre o vão e a plataforma
a vida e a tela do celular
todo dia é uma guerra
que a gente perde e ganha
comemore com os seus
comemore com a sua
mesmo que seja derrota
A vida não é só vitória
arme se
ame
como o mundo fosse acabar por inteiro
ame
mas se ame primeiro

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

porões abertos







Nunca duvide de uma mãe, as suas lamurias e observações precisam sempre ser levadas em conta, disse me um velho numa fila do hospital. E a historia era mais o menos assim.
Uma moça magra com vestido branco e lenço vermelho perambulava pelas ruas de Guarulhos perguntando para quem passasse por ela
- Alguém viu meu filho? Ele é grande, risonho e negro.
- Senhor!! Será que o senhor viu meu filho, ele disse que ia encontrar os amigos, mas não voltou ainda...O Padre Geraldo o viu.Será que o senhor não viu?
E a moça rodava toda Guarulhos em busca do seu filho, todo mundo sabia quem ela era nunca de onde vinha e onde morava, mas nunca souberam do seu filho, diziam que ela ficou louca com o sumiço dele em meados dos anos de 1970 e que por anos buscava noticias e ate hoje caminha pela cidade. Um dia destes, acho que em agosto de 2013 eu passava pela avenida Otavio Braga eu a encontrei  e ela continuava vestindo as mesmas roupas, ainda que mais surradas, entretanto havia um detalhe ela carregava uma garrafa  que muito parecia pinho sol continuava abordando pessoas na rua em prantos. Sempre com a mesma pergunta.
- O Senhor viu meu filho? Ele era negro e risonho parece que a policia o levou para o primeiro DP por estar com pinho sol na bolsa. Ele chama Antonio.
Por algum motivo eu fiquei tentado a segui-la mas eu tive que ir ao trabalho naquele dia, sabe como é né, o ponto não espera, nem as contas. Ainda assim fiquei com aquilo na cabeça, como podia por tanto tempo uma mulher procurar pelo filho, não encontrá-lo e ainda  continuar procurando, só podia ser doida não era possível. Aquilo comeu a minha mente de tal forma que eu tive que ir atrás, eu cheguei a não dormir aquele dia, logo cedinho sai e fui para praça Getulio Vargas perguntando para os moradores de rua, fui na igreja atrás do Padre  Geraldo, mas a moça que cuidava da igreja disse que  depois do acidente que ocorreu ele tinha mudado para o Canadá.Ela dissera que justamente sobre o ano que eu perguntei ele caiu das escadas da igreja e ficou paraplégico e logo em seguida foi viver no Canadá. Achei horrível aquilo, um tombo o padre fica paraplégico. A moça ainda me disse que aquela mulher passava freqüentemente na igreja, mas era sempre a mesma ladainha e até enviou uma carta perguntado para o padre sobre o paradeiro do filho, mas ele nunca respondeu.
Eu a procurei também na Santa Casa de Guarulhos e o responsável me disse que ela ficou internada alguns dias para exame e avaliação psiquiatra, foi medicada e foi embora, o único endereço que tinha de referencia era um prédio antigo ao lado da igreja santa clara,  mas que é uma oficina mecânica e ninguém a conhecia lá, também deixou o quarto escritos varias frases nas paredes e algumas poesias, disse também que o medico tirou algumas fotos para registrar no prontuário. E eu tive oportunidade de ver as fotos, mas algumas palavras me chamaram atenção, uma frase em especifico " não tive tempo de ter medo". C.M,
Aquelas palavras me chamaram ainda mais atenção, de onde ela havia tirado aquilo. Aquilo me marcou. Era tarde, fui pra casa e sonhei com aquela palavra pichada de vermelho em um muro na Avenida Pio XII , na altura do batalhão da aeronáutica. Alguns guardas em formação e outros apagando o picho coma cor preta. Acordei com o soldado apontando pra mim. Fui pro trabalho e perguntei para o seu Zé, trabalhador mais antigo do escritório e ele me disse que naquele lugar onde hoje é a oficina era o centro cultural Paulo Pontes, onde se reunia a juventude para fazer teatro e musica. Aquilo me abriu a mente pensando que aquele filho da moça freqüentava aquele lugar. Aquilo por dias me prendeu a cabeça, mas com o tempo fui esquecendo, esquecendo...até que um dia aquela história sumiu da minha cabeça, como chuva que acaba, como paixão que finda. Por anos esqueci a história. Até que em março de 2018   dirigindo voltando do futebol de quarta feira encontro-a em pratos, com roupas diferentes,  olhando a TV e  gritando para quem pudesse ouvir que haviam assinado a filha dela no Rio de Janeiro. Na TV noticiava o assassinato de uma vereadora do Rio de Janeiro. Parei o carro disse que a levaria para casa e meio que em um transe ela não parava de repetir.
- mataram meu filho
- mataram minha filha
- mataram meu filho
- mataram minha filha
Aos poucos ela foi se acalmando, se calou completamente. Parei o carro. Disse que gostaria de ajudar-la, mas ela não falava nada. Abriu a porta do carro e saiu pelas ruas de Guarulhos até chegar em frente a Igreja Nossa Senhora do Rosário e apontar para a torre onde há muito tempo havia um sino, mas eu nunca tinha reparado. Catatônica ela ficou parada apontando para o sino.  Fui até a igreja, havia uma pessoa sentada rezando e aquela mesma moça que cuidava da igreja estava lá. E disse que por muito tempo havia guardado uma cópia da carta do Padre Geraldo enviou e mostrou :

 Querida irmã de Deus  escrevo te essa carta e espero que fique entre nós.
Essa moça que me procura é mãe de uma pessoa que foi assassinada o nome no moço é Antonio de Souza Campos, conhecido como Nego Sete, ele foi assassinado pelo Esquadrão da Morte e por acaso eu acabei fotografando o assassinato, não pude revelar as fotos no Brasil e tive que enviar-las para o exterior para a impressão, devido ao risco de caírem em mãos erradas. Por este mesmo motivo tive que viajar para fora do país. Já as enviei para um Advogado que irá cuidar do caso. Espero que dê tudo certo. A verdade precisa ser dita.
Avise a mulher que seu filho que está com deus.

                  Padre Geraldo Mauzerol
                                                            14-3-1980

Eu fiquei perplexo, aquela carta era datada dos anos de 1980. Quando olho para trás o cheiro de velas perfumava o ar, devotos estavam sentados rezando e a irmã não estava mais lá. Corri e fui para a rua e moça também não estava mais, meu carro estava no mesmo lugar e o entorno da Igreja era um estacionamento. Fui para casa e dormi um sono dos deuses. Em meados dos anos 1990 descobri que haviam sentenciado um delegado dos anos de 1970 por assassino de 14 jovens em Guarulhos. O delegado, chamado Fleury morreu anos depois em um acidente no litoral paulista.

O velho me disse que nunca mais viu a moça, mas já ouviu outras pessoas dizerem que já viram essa moça pelas ruas de Guarulhos. Me pediu para caso eu a encontre, diga que soubemos da história dos seus filhos e filhas e que a história tarda mais não falha.

Este é conto de ficção, inspirado em algumas histórias escutadas.

*
Em Guarulhos foi instituida a comissão da verdade para investigar os crimes da ditadura pela portaria 19.381/2013, todavia foi encerrada e pouco foi revelado.https://www.fmetropolitana.com.br/55-anos-do-golpe-militar-assassinatos-e-intervencao-federal-a-prefeito-marcam-historia-em-guarulhos/

terça-feira, 27 de agosto de 2019

aqui jazz vidas






as casas estão cheias de grades,
já é tarde pra nossa liberdade,
As ruas e parques estão vazias 
Aqui jazz vidas
diz o cartaz na avenida.
Vende se sonhos
Pelo facebook
E a gente se ilude
com tanta saúde 
que desce pro ralo
cada galho de arvore cinza
Sera nossa cinza.
Na rede é tudo kkk
É a nova kkk
o poeta diz uma vez
A gente repete pra gravar.
Compra se couro de trabalhador
A fila 
O fela 
O filho dele quer ser embaixador
ele não
ele não 
mas quem então?
É noix
Organizado ou não
que muda esse mundão.
a poesia é
a poesia foi
A poesia esta Proibida
em grande parte da America Latina
a gente desanima
se anima
se vira na rima 
na métrica 
na festa 
na guerra 
que as palavras
pulam da cabeça
acessa pela revolta
pelo amor que nos une
quando a gente se reune
pra lembrar da vida que passou
E o que virá
Enquanto o barco da vida não vira
Eu remo
até a ultima gota de poesia acabar.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

(aMOR)TE da cachorra vaca



(aMOR)TE da cachorra vaca

Você latia e pulava no colo de todo mundo toda vez que qualquer pessoa chegasse em casa, não importava quem, era como se fosse oi gente, to aqui. Durante quase 17 anos essa polemica. Era alguém chegar em casa que você fazia isso. Amou e teve ciumes de quem fosse que passasse muito tempo no quarto, era chegasse de manha e a porta estivesse fechada  e ela queria entrar, e se não entrasse fazia graça, cagava pra fora do jornal, mordia o pé do sofá, minha mãe gritava lá da cozinha " mel sua vaca, some da minha frente" e a gente já sabia que tinha relação com merda ou com você pulando a janela, bom, para quem não sabe, sua juventude canina foi de pular a janela de medo, da minha mãe ou da furadeira, na verdade não importa, o que importa mesmo é que era a janela do segundo andar.
Um dia você parou de latir e cumprimentar as pessoas, era as vezes um cheirinho para cá, uma olhada pra la, e eu de alguma forma já sabia . Outro dia você jã não enxergava muito bem e nem escutava direito, mas ainda assim a gente gritava:  "alguém tira a mel do banheiro que ela ta bebendo água do box", acho que ela bebia essa água porque bebia nossa vida que era lavada todo dia no chuveiro, entre angustias e amores,entre sonhos e revoltas. Outro dia não teve jeito, a gente teve que levar ela no veterinário, popular claro, sabe esses de universidade...barato, o medico demorou metade de um dia para dizer o que eu já sabia, que ela tinha câncer e que eu teria que gastar o que eu não tinha para tirar o que para mim era uma bola de gude na sua tetinha, essa bola virou um limão que cheirava azedo e depois uma bola de sinuca e foi ai que a Juliana me indicou a doutora Jessica, pensei comigo numa arrogância que dizem ser dos Arianos, mas na verdade é minha mesmo, Doutora uma porra, não tem Doutorado, e o melhor para mel e pior(ou melhor pra minha arrogância) ela tinha ou estava fazendo, e nunca ligou por eu não a chamar de Doutora Jessica e sim de Jessica, vai ver é isso, quem tem títulos demostra na prática e não na arrogância( toma essa trouxa- arrogante) já fui sabendo que não podia pagar e paguei, paguei tudo que eu não tinha porque era você mel, bibo, minha filha, minha mãe, minha irmã, minha cuidadora, porque era ela quem cuidava da gente e não a gente dela. Mesmo depois da cirurgia ela tinha a mesma mania de anos de enquanto eu estava sentado no quarto, lá da sala entre a mesa do computador ela me olhava e ficava la por horas, eu escrevia, soprava horas de harmônica, lia e ela ficava la submersa no olhar, perplexa com o tempo que eu gastava em fazer um milhão de coisas e ela num único ato, observar. Eu tinha mania de inventar histórias para todo mundo, sobretudo para o Gustavo, meu sobrinho, sobre você ser uma cachorra agente secreta, ex membro da KGB e veterana da segunda guerra mundial, ganhadora de medalhas de honras pela URSS, premio Lenin e os caraio e que você estava em casa apenas para ser espiã e não ser encontrada e quando a gente dormia, você realizava algumas missões secretas.Quando a gente recebeu os exames pós cirurgia eu só queria saber o tempo, mas mesmo a Rebeca, recepcionista da clinica sabendo mais o menos nunca me disse, nem a Jessica, mas entre a troca de olhares a gente já sabia, pelo trato humanizado todo mundo sabia, inclusive eu, mas la no fundo não acreditava. Um dia você não levantou mais, não observava mais, não fazia mais suas missões secretas, não bebia mais água do box  nem qualquer outra coisa, aquele olhar profundo já era um grande olhar cinzento e negro como o universo. Talvez tenha sido por isso que você chorava e a gente fazia carinho até você dormir, como era há 17 anos atras quando você chegou e dormia numa caixa de papelão e dormia no nosso colo. A água do box ainda está lá, a janela, o buraco no sofá que você cavou para dormir dentro, só você que não. Você virou alimento para vida, pó-poesia da minha vida e poeira estelar.
Evóe bibinho, melzinha, a gente secreta da URSS.Até outro dia.
Ps: a Mel morreu 1/7/19 e foi cremada na Pedra Roxa, lugar de celebração de todo bairro.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Eu nunca quis ir a guerra






Eu nunca quis ir a guerra
mas ela me requisita
quando a criança morre na fila SUS
sustentada por todos os não que vida da
Eu nunca quis ir a guerra
mas ela providencia
No balção da previdência sugando o que nos é direito e não beneficio
na direção contraria da vida
cavando a morte de quem mais necessita
Eu nunca quis ir a guerra
mas ela me procura
há cada quatro minutos morre trabalhador no Brasil e todo mundo finge que não viu
Na tela do celular que não mostrou
Tao pouco no instagram
Que estragou sua cabeça
Comeu seu juízo
esperando o juízo final chegar sentado na porta do bar
Eu nunca quis ir para guerra
mas ela insisti em me chamar
enquanto a mulher apanha até sangrar o Presidente convida gringo para vir aqui usar e abusar
onde o preto pobre só consegue subemprego e não consegue se sustentar o preconceito é velado não da pra aceitar
Eu nunca quis ir a guerra
mas a guerra está ai
Repare nos faróis
enquanto o rico anda como faraós
não tem dó
Fogo no pavio você não está só
Eu nunca quis ir a guerra.

terça-feira, 12 de março de 2019

amor



amor não é só flores
são dores
cicatrizes
que marcam nosso corpo.
são a duvida
que o desconforto causa
flores que semeiam a vida
sol que irradia nosso dia
é lua que abraça nossa noite
amor cheio de cores
trajeto e transito
que São Paulo  nos separa.
é ponte estaiada que erguemos
todo dia
é sinfonia mal ouvida
contra tempo que o tempo nos enquadra.
amor é som ouvido várias vezes
é arte inacabada
que a gente faz todo dia
é a gente
e é nosso
meu amor.


quinta-feira, 7 de março de 2019

Alucinação




                                               ( Imagens do Livro Holocausto Brasileiro) 


Instituto Psiquiátrico de Guarulhos (IPG) 1972 – Hospital dos loucos.

Eles perambulavam pelo Hospital nus, às vezes com as roupas sujas, entre nós haviam histéricas, mulheres da vida, desajustados, desviados, transviados.Era só o bedel do pátio olhar para  gente que corríamos para as celas...celas, era um amontoado de colchão sujo que fedia a urina cotidiana. Chegávamos de todos os lugares de São Paulo e interior, lembro-me que se comentava na minha cidade que era um Hospital para os nervos e que ajudava muito a família e o doente,  para família quanto mais longe melhor, quanto mais isolado o desajustado melhor. 
Quando Vera chegou, veio calada, quase não olhava, chegou só com as roupas do corpo, levava com ela um retrato surrado e um cordão que sempre carregava nas mãos. Como eu disse, ela não falava com ninguém às vezes sorria olhando para o sol e abraçava-o como se abraça um filho, preparava o passo para um dança, mas logo desistia e ficava hora assim. Vera era extremamente reservada, mas um dia desembestou a falar, parece que queria me dizer aquelas coisas, pressentia que podia perder aquelas memórias, aquelas horríveis lembranças. Aqui transcrevo o que ela me relatou o que passou com ela na casa dos horrores:
- Vera, me responda uma questão! Nós precisamos saber o que acontece com você, por que você não fala, por que as pessoas não querem que você não saia daqui.
- Doutor, Eu não posso te falar já te disse, se eu repetir novamente que este lugar é horrível, que o que vocês fazem aqui é tortura e que eu não tenho nenhum problema de saúde você vai...você sabe.Homens como você me lembra ele. Semanalmente ele me convidada para ir ao parque, para tomar café e passear pelo riacho, fingia que se importava comigo, escutava meus devaneios, meus sentimentos, mas o que ele queria era só uma coisa.  Você não sabe doutor e nunca saberá a dor de perder um filho, de ser mal vista em sua cidade, nos vizinhos comentando e olhando para você com nojo.  Você estudou muito doutor, mas não sabe nada de sentimento, não sabe o que passa na cabeça de uma mãe, uma mulher que só quer o bem dos seus filhos.  Eu vou te contar, mas quero que você grave porque vai ser só uma vez... Eu tinha uma filha doutor, ela era linda, tinha grandes olhos castanhos e mãos de anjo...fininha como uma rosa, seu sorriso parecia o sol da manhã. Ela era minha boneca, minha rainha, era tudo para mim, tudo que eu tinha. Mas eu era mãe solteira, eu tinha pouco dinheiro, trabalhava como passadeira, limpadora de pratos em um bar, trabalhava muito, mas o dinheiro era pouco. Às vezes tínhamos que comer o que aparecia de doação. No dia do aniversário dela ela já estava muito doente, ela tinha febre e me pedia coisas para comer, mas eu não tinha dinheiro para comprar o bolo que ela queria doutor, o bolo que ela viu na vitrine do mercado e enquanto a febre a alucinava ela repetia que queria aquele bolo e aquele bolo me consumia por dentro, eu pensei até fazer coisa errada... Levei-a no hospital público e que disseram que ela tinha infecção no intestino, que ela estava muito doente e que precisava ficar internada, eu não podia não ir para o trabalho, tinha que deixar ela lá...eu precisava comprar o bolo dela. Do final do outro dia cheguei lá para passar a noite como ela, Doutor. Você não entende! Você nunca entederá. Minha boneca, minha princesa morreu no hospital sem mim, sem o bolo sem ninguém, os médicos me acusaram, disseram que eu não cuidava da minha filha, que ela tinha ingerido algo vencido há muito tempo e que teria causado a morte dela. Agora você quer saber qual o meu problema, Doutor?  Você quer saber o que eu sinto? O que aconteceu comigo.
- Vera, você precisa se acalmar, você precisava parar de gritar. Você precisa dormir e esquecer isso tudo. Amanha você não vai lembrar nada, nós estamos testando um novo tratamento que tem grande eficácia nos nervos. Isso você te ajudar a se acalmar. Você vai ver. Amanha você estará melhor.
- Enfermeira, prepare o eletro choque.
- Eu já te disse seu doutor de merda! Eu não vou dormir! Eu não vou esquecer!
- Cansei, sua mendinga!
- Enfermeira, amarre essa desajustada deixe-a no seu quarto que logo vamos começar o procedimento.
Isso foi o que ela contou o que aconteceu na sala dos horrores chegando de lá nós conversamos.
- Vera, se acalma, se não eles vão por você no eletro choque, você sabe, as garotas que estão aqui há mais tempo que passaram por isso já não estão melhor do que antes, depois do choque parece que a esperança se acaba, a gente fica meio sem nada...sem sentimento.  Acalma-se, menina. Naquele dia não sei por que eles não a buscaram. No outro dia logo cedo quando acordei vi Vera olhando para o sol novamente, passou o dia todo olhando para o sol, estupefata,  olhava tão intensa que achei que uma hora ia desmaiar, era domingo dia de visita e ela esperava o carteiro como nunca antes, observava a porta como se esperasse alguém, alguma mensagem, não sei,talvez algum conforto....que nunca veio. A gente olhava os outros internos com seus familiares e o como a família trazia comida diferente, frango, macarronada de domingo e quando o interno não agüentava mais ele jogava no chão e os outros brigavam para comer os restos. Na rua das palmeiras tinha um bar que o dono passava água ardente para os pacientes durante a semana e os familiares pagavam no final de semana, o Bedel via, mas não falava nada porque metade era dele.   Nesse mesmo dia Vera passou a conversar desesperadamente, desabafava, falou pelos cotovelos. Me disse que vinha de Ribeirão Preto  e teve um caso com um figurão da cidade e engravidou , que teve que fugir pois ele não queria o nome dele sujo por uma mulher desclassificada como ela. Disse que veio para São Paulo, mas como o figurão era muito importante colocou pessoas atrás dela até encontrarem e colocarem ela aqui. Esse dia ela falou muito. 
Escrevo essa carta para que saibam que nós vivemos aqui e passamos por maus bocados, mas resistimos e essa noite acabará com esse martírio, coloco essa carta na garrafa para que não queime junto com essa sucursal do inferno.
*
O Complexo Dona Antonia também conhecido como Hospital dos Loucos passou por alguns incêndios e um deles queimou  a ala das mulheres e algumas morreram carbonizadas porque as portas estavam trancadas. Encontramos essa carta no leito 07 dentro de um buraco no chão em 1992 depois de fechar o hospital e enviamos essa carta para Prefeitura de Ribeirão Preto para que tivéssemos alguma resposta, mas até hoje não obtivemos resposta se a tal Vera existia ou era alucinação de outra paciente.
                                                   Guarulhos, 14 de setembro de 1992.