terça-feira, 12 de março de 2019
amor
amor não é só flores
são dores
cicatrizes
que marcam nosso corpo.
são a duvida
que o desconforto causa
flores que semeiam a vida
sol que irradia nosso dia
é lua que abraça nossa noite
amor cheio de cores
trajeto e transito
que São Paulo nos separa.
é ponte estaiada que erguemos
todo dia
é sinfonia mal ouvida
contra tempo que o tempo nos enquadra.
amor é som ouvido várias vezes
é arte inacabada
que a gente faz todo dia
é a gente
e é nosso
meu amor.
quinta-feira, 7 de março de 2019
Alucinação
( Imagens do Livro Holocausto Brasileiro)
Instituto Psiquiátrico de Guarulhos (IPG) 1972 – Hospital
dos loucos.
Eles perambulavam pelo Hospital nus, às vezes com as roupas
sujas, entre nós haviam histéricas, mulheres da vida, desajustados, desviados,
transviados.Era só o bedel do pátio olhar para
gente que corríamos para as celas...celas, era um amontoado de colchão
sujo que fedia a urina cotidiana. Chegávamos de todos os lugares de São Paulo e
interior, lembro-me que se comentava na minha cidade que era um Hospital para
os nervos e que ajudava muito a família e o doente, para família quanto mais longe melhor, quanto
mais isolado o desajustado melhor.
Quando Vera chegou, veio calada, quase não olhava, chegou só
com as roupas do corpo, levava com ela um retrato surrado e um cordão que
sempre carregava nas mãos. Como eu disse, ela não falava com ninguém às vezes
sorria olhando para o sol e abraçava-o como se abraça um filho, preparava o
passo para um dança, mas logo desistia e ficava hora assim. Vera era
extremamente reservada, mas um dia desembestou a falar, parece que queria me
dizer aquelas coisas, pressentia que podia perder aquelas memórias, aquelas
horríveis lembranças. Aqui transcrevo o que ela me relatou o que passou com ela
na casa dos horrores:
- Vera, me responda uma questão! Nós precisamos saber o que
acontece com você, por que você não fala, por que as pessoas não querem que
você não saia daqui.
- Doutor, Eu não posso te falar já te disse, se eu repetir novamente
que este lugar é horrível, que o que vocês fazem aqui é tortura e que eu não
tenho nenhum problema de saúde você vai...você sabe.Homens como você me lembra
ele. Semanalmente ele me convidada para ir ao parque, para tomar café e passear
pelo riacho, fingia que se importava comigo, escutava meus devaneios, meus
sentimentos, mas o que ele queria era só uma coisa. Você não sabe doutor e nunca saberá a dor de
perder um filho, de ser mal vista em sua cidade, nos vizinhos comentando e
olhando para você com nojo. Você estudou
muito doutor, mas não sabe nada de sentimento, não sabe o que passa na cabeça
de uma mãe, uma mulher que só quer o bem dos seus filhos. Eu vou te contar, mas quero que você grave
porque vai ser só uma vez... Eu tinha uma filha doutor, ela era linda, tinha
grandes olhos castanhos e mãos de anjo...fininha como uma rosa, seu sorriso
parecia o sol da manhã. Ela era minha boneca, minha rainha, era tudo para mim,
tudo que eu tinha. Mas eu era mãe solteira, eu tinha pouco dinheiro, trabalhava
como passadeira, limpadora de pratos em um bar, trabalhava muito, mas o
dinheiro era pouco. Às vezes tínhamos que comer o que aparecia de doação. No
dia do aniversário dela ela já estava muito doente, ela tinha febre e me pedia
coisas para comer, mas eu não tinha dinheiro para comprar o bolo que ela queria
doutor, o bolo que ela viu na vitrine do mercado e enquanto a febre a alucinava
ela repetia que queria aquele bolo e aquele bolo me consumia por dentro, eu
pensei até fazer coisa errada... Levei-a no hospital público e que disseram que
ela tinha infecção no intestino, que ela estava muito doente e que precisava
ficar internada, eu não podia não ir para o trabalho, tinha que deixar ela
lá...eu precisava comprar o bolo dela. Do final do outro dia cheguei lá para
passar a noite como ela, Doutor. Você não entende! Você nunca entederá. Minha
boneca, minha princesa morreu no hospital sem mim, sem o bolo sem ninguém, os
médicos me acusaram, disseram que eu não cuidava da minha filha, que ela tinha
ingerido algo vencido há muito tempo e que teria causado a morte dela. Agora
você quer saber qual o meu problema, Doutor?
Você quer saber o que eu sinto? O que aconteceu comigo.
- Vera, você precisa se acalmar, você precisava parar de
gritar. Você precisa dormir e esquecer isso tudo. Amanha você não vai lembrar
nada, nós estamos testando um novo tratamento que tem grande eficácia nos
nervos. Isso você te ajudar a se acalmar. Você vai ver. Amanha você estará
melhor.
- Enfermeira, prepare o eletro choque.
- Eu já te disse seu doutor de merda! Eu não vou dormir! Eu
não vou esquecer!
- Cansei, sua mendinga!
- Enfermeira, amarre essa desajustada deixe-a no seu quarto
que logo vamos começar o procedimento.
Isso foi o que ela contou o que aconteceu na sala dos
horrores chegando de lá nós conversamos.
- Vera, se acalma, se não eles vão por você no eletro choque,
você sabe, as garotas que estão aqui há mais tempo que passaram por isso já não
estão melhor do que antes, depois do choque parece que a esperança se acaba, a
gente fica meio sem nada...sem sentimento.
Acalma-se, menina. Naquele dia não sei por que eles não a buscaram. No
outro dia logo cedo quando acordei vi Vera olhando para o sol novamente, passou
o dia todo olhando para o sol, estupefata,
olhava tão intensa que achei que uma hora ia desmaiar, era domingo dia
de visita e ela esperava o carteiro como nunca antes, observava a porta como se
esperasse alguém, alguma mensagem, não sei,talvez algum conforto....que nunca
veio. A gente olhava os outros internos com seus familiares e o como a família
trazia comida diferente, frango, macarronada de domingo e quando o interno não
agüentava mais ele jogava no chão e os outros brigavam para comer os restos. Na
rua das palmeiras tinha um bar que o dono passava água ardente para os
pacientes durante a semana e os familiares pagavam no final de semana, o Bedel
via, mas não falava nada porque metade era dele. Nesse mesmo dia Vera passou a conversar
desesperadamente, desabafava, falou pelos cotovelos. Me disse que vinha de
Ribeirão Preto e teve um caso com um figurão
da cidade e engravidou , que teve que fugir pois ele não queria o nome dele
sujo por uma mulher desclassificada como ela. Disse que veio para São Paulo,
mas como o figurão era muito importante colocou pessoas atrás dela até
encontrarem e colocarem ela aqui. Esse dia ela falou muito.
Escrevo essa carta para que saibam que nós vivemos aqui e
passamos por maus bocados, mas resistimos e essa noite acabará com esse
martírio, coloco essa carta na garrafa para que não queime junto com essa
sucursal do inferno.
*
O Complexo Dona Antonia também conhecido como Hospital dos
Loucos passou por alguns incêndios e um deles queimou a ala das mulheres e algumas morreram
carbonizadas porque as portas estavam trancadas. Encontramos essa carta no
leito 07 dentro de um buraco no chão em 1992 depois de fechar o hospital e
enviamos essa carta para Prefeitura de Ribeirão Preto para que tivéssemos
alguma resposta, mas até hoje não obtivemos resposta se a tal Vera existia ou
era alucinação de outra paciente.
Guarulhos, 14 de setembro de 1992.
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