quarta-feira, 23 de outubro de 2019

porões abertos







Nunca duvide de uma mãe, as suas lamurias e observações precisam sempre ser levadas em conta, disse me um velho numa fila do hospital. E a historia era mais o menos assim.
Uma moça magra com vestido branco e lenço vermelho perambulava pelas ruas de Guarulhos perguntando para quem passasse por ela
- Alguém viu meu filho? Ele é grande, risonho e negro.
- Senhor!! Será que o senhor viu meu filho, ele disse que ia encontrar os amigos, mas não voltou ainda...O Padre Geraldo o viu.Será que o senhor não viu?
E a moça rodava toda Guarulhos em busca do seu filho, todo mundo sabia quem ela era nunca de onde vinha e onde morava, mas nunca souberam do seu filho, diziam que ela ficou louca com o sumiço dele em meados dos anos de 1970 e que por anos buscava noticias e ate hoje caminha pela cidade. Um dia destes, acho que em agosto de 2013 eu passava pela avenida Otavio Braga eu a encontrei  e ela continuava vestindo as mesmas roupas, ainda que mais surradas, entretanto havia um detalhe ela carregava uma garrafa  que muito parecia pinho sol continuava abordando pessoas na rua em prantos. Sempre com a mesma pergunta.
- O Senhor viu meu filho? Ele era negro e risonho parece que a policia o levou para o primeiro DP por estar com pinho sol na bolsa. Ele chama Antonio.
Por algum motivo eu fiquei tentado a segui-la mas eu tive que ir ao trabalho naquele dia, sabe como é né, o ponto não espera, nem as contas. Ainda assim fiquei com aquilo na cabeça, como podia por tanto tempo uma mulher procurar pelo filho, não encontrá-lo e ainda  continuar procurando, só podia ser doida não era possível. Aquilo comeu a minha mente de tal forma que eu tive que ir atrás, eu cheguei a não dormir aquele dia, logo cedinho sai e fui para praça Getulio Vargas perguntando para os moradores de rua, fui na igreja atrás do Padre  Geraldo, mas a moça que cuidava da igreja disse que  depois do acidente que ocorreu ele tinha mudado para o Canadá.Ela dissera que justamente sobre o ano que eu perguntei ele caiu das escadas da igreja e ficou paraplégico e logo em seguida foi viver no Canadá. Achei horrível aquilo, um tombo o padre fica paraplégico. A moça ainda me disse que aquela mulher passava freqüentemente na igreja, mas era sempre a mesma ladainha e até enviou uma carta perguntado para o padre sobre o paradeiro do filho, mas ele nunca respondeu.
Eu a procurei também na Santa Casa de Guarulhos e o responsável me disse que ela ficou internada alguns dias para exame e avaliação psiquiatra, foi medicada e foi embora, o único endereço que tinha de referencia era um prédio antigo ao lado da igreja santa clara,  mas que é uma oficina mecânica e ninguém a conhecia lá, também deixou o quarto escritos varias frases nas paredes e algumas poesias, disse também que o medico tirou algumas fotos para registrar no prontuário. E eu tive oportunidade de ver as fotos, mas algumas palavras me chamaram atenção, uma frase em especifico " não tive tempo de ter medo". C.M,
Aquelas palavras me chamaram ainda mais atenção, de onde ela havia tirado aquilo. Aquilo me marcou. Era tarde, fui pra casa e sonhei com aquela palavra pichada de vermelho em um muro na Avenida Pio XII , na altura do batalhão da aeronáutica. Alguns guardas em formação e outros apagando o picho coma cor preta. Acordei com o soldado apontando pra mim. Fui pro trabalho e perguntei para o seu Zé, trabalhador mais antigo do escritório e ele me disse que naquele lugar onde hoje é a oficina era o centro cultural Paulo Pontes, onde se reunia a juventude para fazer teatro e musica. Aquilo me abriu a mente pensando que aquele filho da moça freqüentava aquele lugar. Aquilo por dias me prendeu a cabeça, mas com o tempo fui esquecendo, esquecendo...até que um dia aquela história sumiu da minha cabeça, como chuva que acaba, como paixão que finda. Por anos esqueci a história. Até que em março de 2018   dirigindo voltando do futebol de quarta feira encontro-a em pratos, com roupas diferentes,  olhando a TV e  gritando para quem pudesse ouvir que haviam assinado a filha dela no Rio de Janeiro. Na TV noticiava o assassinato de uma vereadora do Rio de Janeiro. Parei o carro disse que a levaria para casa e meio que em um transe ela não parava de repetir.
- mataram meu filho
- mataram minha filha
- mataram meu filho
- mataram minha filha
Aos poucos ela foi se acalmando, se calou completamente. Parei o carro. Disse que gostaria de ajudar-la, mas ela não falava nada. Abriu a porta do carro e saiu pelas ruas de Guarulhos até chegar em frente a Igreja Nossa Senhora do Rosário e apontar para a torre onde há muito tempo havia um sino, mas eu nunca tinha reparado. Catatônica ela ficou parada apontando para o sino.  Fui até a igreja, havia uma pessoa sentada rezando e aquela mesma moça que cuidava da igreja estava lá. E disse que por muito tempo havia guardado uma cópia da carta do Padre Geraldo enviou e mostrou :

 Querida irmã de Deus  escrevo te essa carta e espero que fique entre nós.
Essa moça que me procura é mãe de uma pessoa que foi assassinada o nome no moço é Antonio de Souza Campos, conhecido como Nego Sete, ele foi assassinado pelo Esquadrão da Morte e por acaso eu acabei fotografando o assassinato, não pude revelar as fotos no Brasil e tive que enviar-las para o exterior para a impressão, devido ao risco de caírem em mãos erradas. Por este mesmo motivo tive que viajar para fora do país. Já as enviei para um Advogado que irá cuidar do caso. Espero que dê tudo certo. A verdade precisa ser dita.
Avise a mulher que seu filho que está com deus.

                  Padre Geraldo Mauzerol
                                                            14-3-1980

Eu fiquei perplexo, aquela carta era datada dos anos de 1980. Quando olho para trás o cheiro de velas perfumava o ar, devotos estavam sentados rezando e a irmã não estava mais lá. Corri e fui para a rua e moça também não estava mais, meu carro estava no mesmo lugar e o entorno da Igreja era um estacionamento. Fui para casa e dormi um sono dos deuses. Em meados dos anos 1990 descobri que haviam sentenciado um delegado dos anos de 1970 por assassino de 14 jovens em Guarulhos. O delegado, chamado Fleury morreu anos depois em um acidente no litoral paulista.

O velho me disse que nunca mais viu a moça, mas já ouviu outras pessoas dizerem que já viram essa moça pelas ruas de Guarulhos. Me pediu para caso eu a encontre, diga que soubemos da história dos seus filhos e filhas e que a história tarda mais não falha.

Este é conto de ficção, inspirado em algumas histórias escutadas.

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Em Guarulhos foi instituida a comissão da verdade para investigar os crimes da ditadura pela portaria 19.381/2013, todavia foi encerrada e pouco foi revelado.https://www.fmetropolitana.com.br/55-anos-do-golpe-militar-assassinatos-e-intervencao-federal-a-prefeito-marcam-historia-em-guarulhos/